Crianças manipuladoras

Fabíola Sperandio T. do Couto 

“Eu fico com a pureza e a resposta das crianças: É a vida! É bonita e é bonita!”

O nosso querido Gonzaguinha compôs uma música cuja frase chave é essa acima. Com ela, podemos interpretar que TODA criança é pura na visão do compositor, mas contrariando a bela letra que já cantarolamos inúmeras vezes, tenho que alertar que existem crianças más e manipuladoras. E, infelizmente, muito mais do que possamos imaginar. Se os adultos da relação somos nós, por que nos deixamos manipular ou não as percebemos? Vamos lá!

Nós nos envolvemos emocionalmente com as crianças. Elas são meigas fisicamente, possuem uma voz doce e sabem piscar os olhinhos como ninguém quando desejam algo. E como nos derretemos por elas. Assim, fica difícil perceber quando elas mentem, criam, inventam e, muitas vezes, transformam a nossa vida em um caos.

Adultos muito ocupados possuem a tendência de não verificar as versões dos fatos e já assumem o que a criança conta como verdade absoluta e saem fazendo aquele estrago na família, escola, condomínio onde moram, etc. Inocência dos responsáveis? Omissão? Comodismo? Seja qual for a palavra escolhida, na verdade, precisamos acreditar que podemos ser manipulados por crianças de 2 anos, por exemplo.

Um dia pude acompanhar um caso bem intrigante. A família recorria à escola de seu filho com bastante contrariedade, alegando que seu pequeno estava sofrendo perseguição de colegas. A escola se prontificou a investigar a situação. Na devolutiva à família, foi pontuado que o filho estava com uma postura provocativa, o que gerava a reação dos colegas. Os pais, bastante revoltados, acusavam a escola de não cumprir com competência seu papel, acreditavam que seu filho era vítima de maus tratos dos colegas gratuitamente. O filho, percebendo o movimento defensivo dos pais, mostrou-se contrariado com a escola e solicitou a mudança da instituição. O mesmo foi transferido para outro ambiente escolar. Não demorou muito e a história se repetiu na outra escola. Os pais ainda não conseguiram enxergar o comportamento do filho e, novamente o transferiram de escola. Entre essas saídas e matrículas, a mesma criança também fazia severas queixas de perseguição sobre a síndica do prédio onde morava. A família se posicionava bravamente contra as regras e atitudes da síndica, que sempre penalizava o pobre filho. Percebendo a atitude defensiva sem confirmação da veracidade das histórias, o pequeno manipulador de 5 anos agora estava acusando a empregada de não lhe oferecer guloseimas após o almoço. E ainda foi além, a acusava de comê-las na sua frente. Isso resultou na demissão da funcionária de 4 anos de trabalho com essa família.

O que acordou essa família? Uma viagem com amigos para praia. Juntos por 24 horas, os pais tiveram tempo, longe dos afazeres e entregues ao lazer, de ter a real percepção da personalidade do filho. Tudo começou ao observar, de longe, a resistência do filho às regras das brincadeiras com os filhos das famílias de amigos presentes na viagem. Depois, ver o filho maltratando o salva-vidas da praia foi triste, mas muito mais chocante, foi ouvi-lo narrar o que houve entre ele e o salva-vidas, uma vez que não sabia que os pais estavam por perto ouvindo e vendo tudo. Quanta dor e arrependimento por terem maltratado tantos profissionais sem a mínima razão. Depois, quanto tempo se perdeu reforçando o comportamento deste ser tão cheio de vontades más.

Observar o comportamento das nossas crianças é muito importante. Crianças que maltratam animais, acham graça da dor do coleguinha, demonstram possessividade nas amizades, fazem dengo para conseguirem o que desejam ou se entregam a birras e emburramento, precisam de orientação e cuidados.

Percebo a manipulação também quando os pais são separados. Se os pais não se unirem pela criação dos filhos através das trocas e diálogos, correm sérios riscos de serem manipulados. Neste caso, os ganhos secundários com a separação podem transformar os filhos em verdadeiras crianças cruéis. Na fase adulta, deparamo-nos com pessoas manipuladoras, maldosas, mentirosas, que culpabilizam o outro e podem ter aprendido essa conduta ainda bem pequeninas.

Atenção às pequenas mentiras e transferências de culpa. Uma criança que está com uma tesoura na mão e nega que cortou a cortina, mesmo com todas as evidências, precisa ser acolhida e orientada. Achar engraçadinho e fingir que caiu em seu teatrinho, só a conduzirá para um comportamento de desvio de conduta.

Alguns filmes retratam comportamentos destrutivos, raivosos, maldosos de crianças, mas, como aprendemos que crianças não mentem e são puras, fechamos os olhos, erroneamente, para essa possibilidade.


Fabíola Sperandio T. do Couto é Pedagoga, Psicopedagoga e Terapeuta de Família e Casais. Atua em educação desde 1984 e em consultório desde 1999. É Diretora Pedagógica de uma instituição privada do Maternal ao 9ºano, palestrante e consultora na área educacional e familiar. Escreve semanalmente para o blog Educar Faz Parte (Organização Jaime Câmara/Globo/Ludovica).



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