Eu não sou mais virgem

Uma garotinha de 12 anos. Apenas 12 anos… Classe social elevada, família religiosa, participa de um grupo de jovens, faz um curso para aquisição de uma segunda língua, matriculada em uma escola de referência. Por que estou relatando tudo isso? Porque o preconceito aponta que essa situação só ocorre em uma classe social desfavorecida, em um lar desajustado.
A garotinha, para mim, uma criança, chega até o meu consultório com o nariz empinado, uma fala arrogante e um olhar desafiador. Fico observando essa postura e procurando entender o que há por trás. O fato narrado da perda da virgindade é a consequência, me interesso pela causa. O que levou essa criança a ter uma experiência sexual tão jovem e ainda anunciar a todos que convivem com ela? Esse era meu foco.


Sentada à minha frente, ela parecia ironizar toda a situação. Olhava-me como se eu fosse me tornar mais uma vítima do seu comportamento desrespeitoso. Ela queria me chocar, como fez com todos. Eu não estava chocada. Eu estava curiosa e com desejo de ajudá-la.
Comecei pedindo para que ela falasse como se vê, que me apresentasse isso. Disse a ela que o que ela fez, eu já sabia. Que não me interessava a princípio. Que ali eu queria conhecê-la. Ela me fitou com o olhar. Parecia incrédula de que eu não queria cutucá-la sobre detalhes da sua vivência sexual. Percebi que a desmontei. Pensei: “É agora! Peguei você!”
Melissa (nome fictício) começou a me contar sobre o que ela fazia. Narrava a sua rotina de vida. Não conseguia dizer quem era ela, do que gostava, do que se interessava, como se via no seio familiar. Só repetia a rotina exaustiva em que estava inserida. Quase todas as obrigações diárias impostas pela família.
Ouvi atentamente e provoquei. “Melissa, você só soube me contar o que faz. Quero saber quem é você aí dentro. Fale de seus sentimentos para mim. Fale da sua convivência, daquilo que é importante para você.” Um choro compulsivo tomou conta dela. A menina arrogante saiu e chegou a menina frágil. Sua postura altiva foi dando lugar à posição fetal. Ela ia se encolhendo à minha frente.
Aproximei-me dela. Abri os braços. Ela se encaixou no meu peito. Passando as mãos em seus cabelos, eu disse a ela que não estava ali para julgá-la, mas para ajudá-la. Melissa chorava, sofrida.
Após alguns minutos de colo, retomei a minha condução. Mostrei a ela que, de verdade, me interessava pela pessoa dela. Ela foi se entregando. Narrou seus sentimentos mais profundos. Uma carência impressionante. Uma raiva da vida e de todos, de assustar. Como uma criança de 12 anos poderia ter no peito tanta dor e revolta?
Percebi que era exatamente por não ter direito de ser criança. Essa menina esguia, de cabelos longos e brilhantes, era vestida desde pequena com roupas além da idade dela. A família se orgulhava com tamanha beleza e a motivava a ser sempre além da idade. Não só através das vestes, mas também pela agenda de miniadulta. As projeções eram muitas. A família não percebia que estava pulando etapas e “massacrando” essa criança, que se via obrigada a corresponder.
Melissa, cansada de tudo isso, inconscientemente, deu o troco. Sua revolta culminou em castigar essa família. Porém a castigada foi ela. Melissa sofria. Não conseguia lidar com os sentimentos oriundos da iniciação precoce da vida sexual.
Procurei esvaziar suas dores. Deixe que ela falasse de tudo e perguntasse o que quisesse. Mostrei a ela que agora ela precisava de ajuda. Falamos sobre o dia que, segundo ela, “deu para o primo”. Era um corpo de princesa, com a linguagem chula. Uma doce menina perdida entre sua vida de experiências precoces.
A família estava na recepção. Os pais choravam e tinham um olhar raivoso. Pedi que entrassem. Melissa foi ao banheiro se recompor. Conversamos sobre o ocorrido. Mostrei para a família que precisávamos rever rotinas e cuidar física e emocionalmente dela.
Os pais só pensavam em prendê-la em casa, castigá-la. Pontuei que o que aconteceu foi na casa deles. Que não era prendendo ou castigando que evitariam. Precisavam aprender a escutar e amar. Que agora era acolher e orientar.
Melissa retornou. Olhou os pais e baixou os olhos. Uma postura bem diferente de quando chegou. O pai não a olhou. Estava possesso e assustado. A mãe chorou, mas não a acolheu. Eu estendi a mão e a puxei para um abraço. Fizemos alguns combinados. Melissa aceitou todos. Estava sedenta por ajuda.
Terminando a sessão, despeço-me de todos. A mãe pediu para marcar o retorno. Ofereci uma data com uma semana. Melissa começou a falar e silenciou-se. O pai olhou para ela e disse “Não tem querer, menina! Vai vir sim!!!”. Melissa, então, disse: “Não era isso, papai. Só achei longe o dia. Queria voltar antes”.
O pai me olhou aflito. Com meu olhar enviei uma mensagem de compreensão à reação dele, porém de clamor por não agir mais assim. Fiz com que todos se dessem as mãos e falei a eles: “Vamos exercitar a escuta a partir de hoje”.
Espero que essa família reveja seus hábitos e volte o olhar para cada um com mais proximidade e generosidade. Espero o próximo encontro com Melissa, ansiosa por ajudá-la a retomar o seu caminho com menos dor e mais sabedoria.

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